Coligay
A Coligay foi uma torcida organizada do Grêmio que existiu entre 1977 a 1983. Criada por Valmor Santos, gerente da boate Coliseu, seu nome é uma mistura do nome da casa noturna com o termo "gay". Integrada somente por homossexuais, foi a primeira torcida do tipo no Brasil.[1] A existência da Coligay coincidiu com um período de vitórias do Grêmio, iniciado pela conquista do Campeonato Gaúcho, que o clube não vencia desde 1968, e culminando na conquista do Mundial Interclubes de 1983.
Por sua existência durante a ditadura civil-militar, a Coligay encarou repressão por parte do Estado, como a vigilância da Delegacia de Costumes.[2] Por conta da homofobia, a torcida contava com apoio de advogados para caso houvesse represália e treinava caratê para autodefesa. Houve apenas um incidente homofóbico registrado ao longo de sua existência.[1]
Depois de décadas de apagamento, o legado da Coligay tem sido reapropriado pelo Grêmio e por seus torcedores a partir dos anos 2010. O museu do clube exibe um painel em homenagem à Coligay[3] e a torcida Grêmio Antifascista leva faixa com o nome do histórico grupo à Arena. Além disso, o movimento de torcedores Tribuna 77 já afirmou entender a histórica torcida como "exemplo de reafirmação e de respeito quanto à diferença".[4] Uma recriação da torcida foi cogitada em 2017, mas abandonada por conta de ameaças homofóbicas em redes sociais.[5] Por fim, uma série de produções recentes, incluindo livros, matérias em jornais e trabalhos acadêmicos, tem sido realizada sobre a Coligay, ressaltando o seu pioneirismo e o enfrentamento ao machismo e à homofobia durante a ditadura civil-militar.
Em junho de 2024, foi confirmada a produção de uma série ficcional sobre a Coligay, a ser exibida no Canal Brasil.[6]
História
[editar | editar código-fonte]A Coligay surgiu a partir de uma iniciativa de Valmor Santos, proprietário da boate gay Coliseu, localizada em Porto Alegre. Santos, que se dizia "sempre torcedor doente do Grêmio"[7] convidou os frequentadores da casa noturna para integrarem a nova torcida. Conforme o fundador, a ideia já era gestada há tempos[8]:
A Coligay era uma ideia muito antiga, eu já pensava nisto há muito tempo. Eu sou gremista fanático desde que nasci e sempre tive vontade de organizar uma torcida. Achava que os torcedores do Grêmio eram muito parados, que não sabiam incentivar o time. Então, no início deste ano, quando eu senti o Grêmio realmente iria ser o campeão, decidi formar o grupo
O nome da torcida era uma contração do nome da boate com o termo "gay".[7] Além de origem da torcida, a casa noturna funcionava como sua sede e local de guardar materiais.[7]
O primeiro jogo com presença da Coligay foi Grêmio e Santa Cruz, em 10 de abril de 1977, no estádio Olímpico, em partida válida pelo Campeonato Gaúcho.[9] Na época, há registro de apenas duas torcidas organizadas do Grêmio: Eurico Lara, oficial, a Força Azul, independente. De fato, eram raras torcidas desvinculadas de clubes em Porto Alegre.[9]
A torcida realizava ensaios todos os sábados à tarde e, preparando-se para qualquer tipo de agressão possível - uma vez que sentiam-se ameaçados no ambiente do estádio, extremamente machista e homofóbico -, Volmar instruiu os integrantes a fazerem aulas da caratê para defesa pessoal.
A Coligay foi uma torcida fiel, que acompanhou o time do Grêmio por todo o interior do estado do Rio Grande do Sul. Os coliboys, como eram chamados, chegaram a alugar uma kombi para viagens ao interior. A atuação da torcida também era política, tendo em 1978 apoiado a reeleição do então presidente Hélio Dourado, além de participarem de campanha para a conclusão das obras do estádio Olímpico[10]. Também participaram de eventos beneficentes de diversas naturezas[11] Chegou a reunir por volta de cento e cinquenta integrantes, o que, para a época, é um número considerado alto.[7]
A torcida acabou virando um amuleto do time: após grande jejum de títulos, justamente em 1977 o Grêmio voltou a ser campeão. A fama de pé quente foi tanta que até mesmo o presidente do Corinthians fez um convite para que os torcedores fossem à São Paulo para romper um jejum de títulos que já superava os vinte anos, arcando inclusive com os custos da viagem.[12] E deu certo, naquela ocasião o clube ganhou o jogo e foi campeão do campeonato paulista.
Na década de 80, Volmar precisou voltar para Passo Fundo, sua terra natal, por motivos pessoais. Com a ausência do criador, a torcida foi perdendo força, até sua extinção em 1983.
Hino
[editar | editar código-fonte]Composto pelo jornalista Hamilton Chaves, parceiro de Lupicínio Rodrigues em muitas canções, o hino era o seguinte: "Nós somos da Coligay; com o Grêmio eu sempre estarei. É bola pra frente, campeão novamente. É Grêmio, força e tradição. Sou tricolor pra valer, pra vibrar e vencer, para o que der e vier. Nós, Coligay de pé-quente, estaremos presentes onde o Grêmio estiver"[13]
Repercussão
[editar | editar código-fonte]A presença de uma torcida abertamente homossexual gerou reações de hostilidade entre os demais torcedores gremistas, dirigentes tricolores e torcedores adversários, ocasionando cenas constantes de agressões, na tentativa de intimidar e coibir as manifestações da Coligay, tanto em partidas no Olímpico, como nos demais estádios pelo país. Os próprios dirigentes do clube à época demonstravam um comportamento de complacência às reações homofóbicas, recusando-se a falar sobre o assunto, como por exemplo fez, o então presidente do Grêmio Hélio Dourado. A torcida, apesar de desejar o reconhecimento do clube, queria ser totalmente independente do clube. Afirmava que estavam ali para apoiar o time, não para ser dependentes dele.[12]
Recém-criada, a Coligay foi noticiada na revista Placar. O jornalista da revista descreveu a torcida da seguinte maneira:
“Numa coisa a Coligay é inatacável: Um tanto quanto afastado das outras torcidas organizadas do clube — a Força Azul e a oficial Eurico Lara —, aquele grupinho de torcedores se despertou algum sentimento de quem observava à distância foi de surpresa: superava em animação as outras duas, batendo seus tambores e berrando o tempo todo em um jogo que o time levava fácil”.[14]
“A cozinha foi reforçada, sob o comando do famoso percussionista Neri Caveira, chegando a abafar os tímidos repiques da Força Azul, eles passaram a levar faixas identificativas, a bailar — rebolando e levantando graciosamente o pezinho — e, quando uma bola raspava a trave defendida pelo goleiro do Grêmio, juntavam as palmas das mãos e soltavam agudos gritos de emoção”.[14]
Sobre as agressões dos próprios gremistas, o vice-presidente Volmar Santos teria afirmado para a referida revista:
“O que eles não entendem é que antes de tudo somos gremistas, que vibramos de paixão pelo nosso clube. Toda essa turma que está aí já vinha ao estádio há muito tempo, e a única diferença é que agora estamos reunidos, torcendo numa boa, na nossa, entende?” Entre comentários de desaprovações e indiferença, Jorge, o então presidente da Força Azul, teria dito: “É tudo Grêmio!”.[14]
Sobre a recepção de outras torcidas, há relato que os próprios torcedores do Inter pediram para entrar na torcida gremista, mas que foram barrados justamente por serem colorados. A iniciativa também inspirou torcedores de outros clubes a criarem suas próprias torcidas LGBTs. Em 1979 é criada "Fla-gay", do Flamengo e a Fo-gay, do Botafogo.
Legado da Coligay
[editar | editar código-fonte]A memória da Coligay sofreu um processo de apagamento ao longo das décadas.[15] Na segunda metade dos anos 2010, em movimento impulsionado, entre outros fatores, pela publicação de livros e pesquisas acadêmicas sobre a Coligay e pela maior participação de sujeitos LGBT no futebol, a torcida começou a ser reapropriada afirmativamente por parte da torcida do Grêmio.[16] Em 2014, surgiu no Facebook a torcida Grêmio Queer, ao mesmo tempo que em que outras torcidas queer eram criadas no Brasil.[17] Três anos depois, no Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia, o Grêmio exibiu a mensagem "A diversidade nos fortalece" na parte de trás da camiseta dos atletas, em jogo contra o Fluminense. Um mês depois, o clube postou em suas redes sociais referentes ao Dia do Orgulho LGBT. Nenhuma das duas ações, contudo, citou a Coligay.[18]
Uma faixa lembrando os quarenta anos da torcida foi levada à Arena do Grêmio pelo movimento Grêmio Antifascista, em 2017.[19] No mesmo ano, houve um projeto de recriação da torcida, abandonado devido a ameaças homofóbicas nas redes sociais.[5]
O movimento Tribuna 77, criado por torcedores do clube, também assume o legado da Coligay como posição contra a LGBTfobia, procurando recuperar a história da torcida, a qual é entendida como "exemplo de reafirmação e de respeito quanto à diferença".[4][20] Uma homenagem à torcida também está presente num painel no Museu do Grêmio, que afirma que ela “encarou a ditadura e tomou para si o desafio de reerguer o moral do clube”.[3]
Em 10 de abril de 2021, aniversário de quarenta e quatro anos do primeiro jogo com presença da Coligay, o Grêmio lembrou o legado da torcida na rede social Twitter.[21]
Há, por outro lado, manifestações homofóbicas de torcidas rivais sobre a Coligay. Em 2009, em um jogo contra o Caracas, válido pelas quartas de final da Copa Libertadores, uma faixa em que se lia "Coligay" estava afixada na parte destinada à torcida da casa do alambrado do Estádio Olimpico de Caracas.[22].
Referências
- ↑ a b Pires, Breiller. «Em plena ditadura, a torcida Coligay mostrava a cara contra o preconceito»
- ↑ FONSECA, D. Para o que der e vier. PLACAR, nº 370, 27 mai. 1977, p. 50.
- ↑ a b Pinto, Maurício Rodrigues (2 de junho de 2018). «A história da Coligay, torcida que desafiou o machismo no futebol». Nexo Jornal. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ a b Canofre, Fernanda (17 de julho de 2019). «Torcida gay marcou era de títulos do Grêmio e teve Renato como xodó». Folha de S.Paulo. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ a b Radaelli, Leonardo (13 de setembro de 2017). «A volta de uma marcha silenciosa e resistente». Editoral J. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ «Coligay: história de torcida gay do Grêmio vira série no Canal Brasil». Diário de Séries. 19 de junho de 2024. Consultado em 30 de junho de 2024
- ↑ a b c d author., Gerchmann, Léo,. Coligay : tricolor e de todas as cores. [S.l.: s.n.] ISBN 9788588412903. OCLC 908392307
- ↑ Barbosa, Camila (2018). “SÃO BICHAS, MAS SÃO NOSSAS”: ANÁLISE DO SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DA COLIGAY COMO UMA TORCIDA ORGANIZADA AUTOAFIRMADA HOMOSSEXUAL(1977-1980). Porto Alegre: [s.n.] p. 68
- ↑ a b «Uma série em homenagem aos 43 anos do surgimento da Coligay». Ludopédio. Consultado em 17 de abril de 2021
- ↑ COLIGAY. Zero Hora. Porto Alegre, 30 set. 1978. Caderno Esportes, Coluna Bola Dividida, p. 38.
- ↑ COLIGAY BENEFICENTE. Zero Hora. Porto Alegre, 16 ago. 1977. Caderno Esportes, Coluna Bola Dividida, p. 34.
- ↑ a b COLIGAY presente. Zero Hora. Porto Alegre, 13 out. 1977. Caderno Esportes, Coluna Bola Dividida, p. 39.
- ↑ Ruiz, Vanessa (22 de maio de 2014). «Livro conta como torcida gay do Grêmio ajudou o Corinthians a sair da fila». UOL. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ a b c Revista PLACAR, nº 869, 26/jan/1987 Página 80 - Reprodução online: Placar Magazine - Google Livros
- ↑ AGUIAR, 2020, p. 250.
- ↑ AGUIAR, 2020, p. 258.
- ↑ AGUIAR, 2020, p. 260.
- ↑ AGUIAR, 2020, p. 261.
- ↑ Berwanger, Joana (21 de outubro de 2018). «Grêmio e Inter Antifascistas veem crescer onda conservadora nos estádios: 'é importante resistir'». Sul21. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ Moura, Kayan (6 de dezembro de 2018). «Futebol contra a opressão: a afirmação das torcidas antifascistas nas arquibancadas do RS». Revista Humanista. Consultado em 10 de agosto de 2020
- ↑ «twitter.com/gremio/status/1380890936985681921». Twitter. Consultado em 17 de abril de 2021
- ↑ Marcos, Mário (29 de maio de 2009). «Quem terá levado a faixa?». Consultado em 10 de outubro de 2018
Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- ANJOS, Luiza Aguiar dos. De "são bichas, mas são nossas" à "diversidade da alegria": uma história da torcida Coligay. 2018. Tese (Doutorado) - Programa Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível on-line
- ANJOS, Luiza Aguiar dos. "Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay". São Paulo: Dolores Editora, 2020. Disponível on-line
- BARBOSA, Camila. "São bichas, mas são nossas": análise do surgimento e consolidação da Coligay como uma torcida organizada autoafirmada homossexual (1977-1980). 2018. TCC (Graduação) - Curso de História, UFRGS, Porto Alegre, 2018. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/182378>. Acesso em: 18 out. 2018.
- BANDEIRA, Gustavo Andrada. Do Olímpico à Arena: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. 2017. 342 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
- GERCHMANN, Léo. Coligay: Tricolor e de todas as cores. Porto Alegre: Libretos, 2014.
- Pinto, Maurício Rodrigues (25 de maio de 2018). «Coligay: o desbunde guei que ganhou os estádios brasileiros». Ludopédio. Consultado em 3 de junho de 2018