Resumo
Este artigo examina a produção da crença na escritora Cora Coralina como ponto de partida para a visualização de algumas feições contemporâneas do encontro entre economia e cultura, destacando a operacionalização de uma política da memória e a fabricação e perpetuação da crença em determinados bens culturais. A investigação das formas de mobilização dos sentidos a partir de instâncias de produção, circulação e consagração contribui para a visualização da economia simbólica nos acervos literários, um amplo empreendimento de alquimia social tecido pelos agentes envolvidos no campo de produção e circulação cultural ao fabricar e consagrar a autoridade da criação. Aqui nos interessa compreender como o campo literário absorveu as mudanças provocadas pela chamada sociedade dos consumidores com o intuito de visualizarmos as implicações da economia simbólica sobre a figura da autora, suas obras e o modo como a crença na assinatura confere legitimidade aos herdeiros se expandindo para o acervo literário (entendido como herança material e simbólica).
Palavras-chave acervos; Cora Coralina; economia simbólica; literatura
Abstract
This paper examines the production of belief in Cora Coralina as a starting point for viewing some contemporary features of the encounter between economy and culture, highlighting the operationalization of a politics of memory and the production and perpetuation of the belief in some cultural goods. The investigation of the forms of mobilization of the senses in from instances of production, circulation and celebration contributes to the symbolic economy in literary collections, a social alchemy by the agents involved in the field of cultural production and circulation to manufacture and consecrate the authority of creation. Interests us here understand how the literary field absorbed the changes caused by consumer society call in order to visualize the implications of token economy on the figure of the author and his works and about how the belief in the signature confers legitimacy to the heirs, especially, expands to the literary collection (understood as material and symbolic inheritance).
Keywords collections; Cora Coralina; economy symbolic; literature
O intuito deste artigo é perceber aspectos da economia simbólica no acervo da escritora goiana Cora Coralina (1889-1985). Nesse sentido, percorreremos as veredas analíticas de Pierre Bourdieu quando examinou o conluio objetivo dos interesses produzido nos circuitos de criação e circulação que, inseparavelmente, confere legitimidade a determinados bens ou pessoas e cria “consumidores convertidos, dispostos a abordá-los como tais e pagar o preço, material ou simbólico, necessário para deles se apropriarem” (Bourdieu, 2002, p. 169, grifo do autor). Daí a importância de examinar a constituição de um capital simbólico de legitimidade, conferido de acordo com as posições no espaço de produção simbólico e os mecanismos de transferência para objetos e/ou pessoas. Capital que pode oportunizar ciclos de consagração cada vez mais duradouros e possibilitar aos agentes a apropriação de uma parcela do produto do trabalho de consagração que não é apenas “um indício de uma posição na distribuição do capital específico, mas representa concretamente a parcela do lucro simbólico (e, correlativamente, material) que eles estão em condições de obter da produção do campo em seu conjunto” (Bourdieu, 2002, p. 171, grifo do autor). É necessário visualizar a lógica mercantil dos usos, ou seja, as disposições de fazer, de ser e de se expressar em virtude das possibilidades de escolha, acesso e utilização dos bens inseridos no mercado constituído monetariamente.
Conforme conclui Zygmunt Bauman (2007), o consumismo contemporâneo adquire feições próprias por se instituir no ambiente de uma sociedade de consumidores: que interpela seus membros basicamente ou exclusivamente como consumidores e que os julga e avalia por suas capacidades e condutas relacionadas ao consumo. Seguindo essas reflexões, Edson Farias (2010) destaca que o termo consumo sintetiza um amplo rol de atividades cujas finalidades podem ser utilitárias, a exemplo das maneiras de comer ou vestir, ou gestos fruitivos, como apreciar uma obra artística. É por isso que o entende como uma síntese discursiva de processos, relações e estruturas de abrangente envergadura que envolve o que a princípio seria disjuntivo, como cultura e natureza, economia e simbólico.
O consumo é entendido como um fenômeno central para a análise de relações sociais e sistemas simbólicos, complexo de rituais de estabelecimento e manutenção de interações cuja participação (ou exclusão) diz respeito a estar incluído em maior ou menor grau em um conjunto de relações sociais. Enquanto categorias de classificação, as mercadorias se tornam elo entre os indivíduos que as possuem ou compartilham da mesma classificação, criando identidades. Entendido como um sistema de significação, mais do que necessidades materiais, o consumo supre necessidades simbólicas. A economia simbólica se definiria pela característica mútua que passa a articular ócio e negócio: “a economia de símbolos e espaços diz respeito, logo, à maneira tal qual na sociedade de consumidores o entretenimento se define como um mecanismo de consagração e instância de legitimidade das práticas culturais” (Farias, 2005, p. 675).
Se historicamente cultura e economia foram termos considerados antitéticos, a questão ganha complexidade ao considerarmos uma economia simbólica dos objetos artísticos (no caso, da literatura) que ainda se revestem de certa aura de sacralidade. Conforme destaca Bourdieu (2002), o comércio da arte ou o comércio das coisas de que “não se faz comércio” funciona como uma denegação prática, ou seja, mediante um recalcamento constante e coletivo do interesse propriamente “econômico”. Em suas análises explicita a oposição entre o comercial e o “não comercial” como o principio gerador da maior parte dos julgamentos que, no teatro, no cinema, na pintura e na literatura, pretendem definir o limite do que é arte e o que não é, ou seja, as oposições entre a arte “verdadeira” e a arte comercial, os considerados clássicos e os best-sellers, os empreendimentos culturais e os empreendimentos comerciais. Todavia, demonstra que esses dois empreendimentos são indissociáveis e que é a sinceridade na eufemização que promove a eficácia propriamente simbólica do discurso dominante. Na verdade, apresenta empresas que, portadoras de um alto capital econômico, tratam os bens culturais como uma fonte de lucro imediato e as que tiram benefício econômico do capital cultural acumulado por elas em estratégias orientadas pela denegação da “economia”. Em ambos os casos a economia simbólica se instaura, visto que a produção de bens culturais está orientada para o mercado, a diferença consiste no modo como se dá a relação com a economia propriamente dita. É por isso que o discurso de autoridade e reputação relativo às empresas de produção cultural deve considerar os modos de envelhecimento de empresas, produtores e produtos.
Nesse aspecto, compete efetuarmos uma aproximação entre acervos literários e economia, na compreensão de como as instituições detentoras dos acervos (de certo modo também herdeiras do prestígio deles decorrentes e responsáveis pela disseminação de determinadas leituras da vida e da obra dos titulares) mobilizam os conjuntos documentais no intuito de manter ou aumentar a energia social dos escritores, seja para a valorização do legado literário, seja desenvolvendo estratégias para a atualização dos conteúdos atribuídos e da importância de sua rememoração.
Para tanto, optamos por apresentar as estratégias de fabricação e consagração em torno do legado de Cora Coralina, a partir de nossa experiência com esse acervo pessoal. Correspondências, produção intelectual, diários, anotações esparsas e uma diversidade de outros gêneros forneciam pistas das condições sociais de produção e de recepção de suas obras, de estratégias utilizadas para a inserção e consecução de seu projeto criador e elementos da experiência familiar, educacional e profissional que ligados a alguns condicionantes institucionais moldaram seus projetos autorais. Nossos interesses se voltaram, inicialmente, para uma preocupação com a organização dos documentos: identificar, classificar, definir um plano de arranjo, ou seja, “dar sentido” aos papéis que haviam sido atingidos por uma enchente em 31 de dezembro de 2001 (Britto, 2014a, 2014b).
Embora nosso primeiro contato com a documentação se pautasse pela “orientação” da arquivística e da museologia, não nos furtamos em observar que os registros possibilitavam, de certo modo, compreender textos e contextos, especialmente os acidentados itinerários de uma mulher que lutava para a profissionalização no campo literário. Seduzidos pelo “legado”, muitas vezes acreditamos na trama discursiva que ele enunciava, sem problematizar a imagem que a titular teceu de si, para si e para os outros. Essa visão ingênua aos poucos foi sendo afastada quando observamos que muitas informações eram contrastantes, outras insistentemente explicitadas, ou que alguns episódios de sua trajetória pessoal e profissional haviam sido “apagados” das narrativas do acervo. Embora soubéssemos que o acervo não poderia ser entendido como um “reflexo” da trajetória, verificamos que ele era um importante campo para a reconstrução dos trajetos da autora e do espaço de produção simbólico a que ousou pertencer. Suspeitávamos que os acervos documentais trouxessem impresso interesses, estratégias e valores de seus produtores e dos grupos a que se referem.
Entre 2002 e 2009 integramos a equipe de organização do acervo pessoal e de reelaboração da exposição museológica do Museu-Casa de Cora Coralina em Goiás (GO) (Britto, 2014a). Essa experiência provocou problematizações em torno da aproximação entre pesquisa de campo e acervos, tornando-se “pretexto” para um encontro etnográfico, nos moldes apresentados por Celso Castro e Olívia Cunha (2005). As análises aqui apresentadas são fruto de algumas experiências com esse acervo pessoal e evidenciam, a nosso ver, um itinerário profícuo para a compreensão das estratégias de fabricação e consagração de legados nas tramas de uma economia simbólica.
Economia simbólica e fabricação/consagração de legados
Compreender as relações entre acervos literários e economia simbólica consiste em considerar as estratégias de manipulação da memória dos titulares e os lucros simbólicos e materiais decorrentes dessa manipulação. Tarefa empreendida em vida pelos integrantes do campo de produção em busca do estabelecimento de legitimidades manifestas nas formas de prestígio, autoridade e distinção. Conforme afirma Bourdieu (1983), no terreno da cultura a luta no interior do campo é integradora, tende a assegurar a permanência das regras do jogo e o princípio da mudança seria a busca do monopólio da distinção, da imposição da última diferença legítima. Em suas análises, a distinção encaminha aquilo que muitos denominam como “marcar época”, consistindo no ato de deter o tempo, de eternizar o estado presente e pactuar entre os agentes a continuidade, a identidade e a reprodução. O “marcar época” consiste em “fazer existir uma nova posição para além das posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na vanguarda, e, introduzindo a diferença, produzir o tempo” (Bourdieu, 1996, p. 181). As lutas pela distinção são constantes e torna-se necessário um contínuo processo de reavaliação, reinvenção e reverberação da memória literária dos agentes a quem se pretende “imortalizar”. Na verdade, os acervos literários possuem valor estratégico nesse processo, já que consistem em indícios e manifestação material de determinados aspectos da trajetória e das obras que interessam consagrar. Surgem, assim, mecanismos que conferem legitimidade (e ilegitimidade) a ações empreendidas em nome da prevalência de determinadas leituras sobre o passado (versões concorrentes) e do monopólio do direito de falar sobre o passado (capitais diferenciados).
É por essa razão que seguimos a opção de Luciana Heymann (2004) ao visualizarmos como os acervos interferem na construção de legados. Não apenas como herança material e política deixada às gerações futuras, mas entendidos como investimento social em virtude do qual uma determinada memória individual é transformada em exemplar ou fundadora de um projeto, ou, em outras palavras, ao trabalho social de produção da memória resultante da ação de “herdeiros” ou “guardiães”: “a produção de um legado implica na atualização constante do conteúdo que lhe é atribuído, bem como na afirmação da importância de sua rememoração” (Heymann, 2004, p. 3). Os agentes interessados se utilizam dos acervos como instrumentos úteis para a criação, manutenção e divulgação da memória do personagem, fomentando a criação de espaços de evocação da imagem e de atualização da trajetória do titular por meio de trabalhos acadêmicos, reedições, exposições, eventos e comemorações. Não desconsideramos as estratégias que o próprio titular forjou com vistas à criação de uma memória que sobrevivesse a sua morte, das quais a constituição do acervo pessoal seria um ilustrativo exemplo. Mas o que nos interessa é perceber as apropriações posteriores dessa memória e as formas de encenação da “imortalidade” instituídas pelos agentes e instituições que se revestem da condição de “herdeiros” ou “guardiães”.
A produção do legado se estabelece conjuntamente com a produção da crença nesse legado. Para além da existência de uma trajetória e de um projeto criador considerado excepcional, torna-se necessário que a energia social produzida em torno de um nome próprio se estenda ao longo do tempo. Quanto maior a extensão cronológica do prestígio, maior é a eficácia dos mecanismos materiais e simbólicos mobilizados contra a ameaça do esquecimento. Desse modo, não basta ser um escritor conhecido e reconhecido em sua geração, é necessário reunir subsídios para que sua obra conquiste perenidade ou reconquiste o prestígio perdido ou não obtido em outros tempos. Tarefas empreendidas não apenas pelos herdeiros legais e simbólicos do autor, mas pelo conjunto de agentes que integram o espaço de possíveis expressivos de produção simbólica: escritores, editores, críticos literários, biógrafos, jornalistas, dentre outros. Ações que convergem para o estabelecimento de uma “marca” distintiva, identificada com o capital simbolizado por seu nome e renome e, consequentemente, com a posição ocupada no campo simbólico.
Concordamos com Andrea Delgado (2003) quando afirma que as práticas de arquivamento devem ser compreendidas como parte de um conjunto de outras práticas de construção de si. Ao investigar as estratégias de monumentalização em torno de Cora Coralina, destaca que seu arquivamento constituiu em um mecanismo de construção de uma memória autobiográfica que a um só tempo autorizaria amnésia e comemoração, visto que o acervo pessoal encobre, oculta e joga para a zona de esquecimento longos períodos e momentos da vida da personagem e sublinha um conjunto de evidências discursivas e materiais importantes na produção do ofício de escritora. A pesquisadora evidencia que a marca desse acervo é o privilegiamento da dimensão pública: “ao capturar os múltiplos discursos que a promoviam como acontecimento estratégico no campo da literatura, da mídia, da produção acadêmica, transformando-os em documentos pessoais”, a escritora teria perpetuado a “plurivocalidade pública que produziu sua monumentalização. Guardar esses documentos configurava uma prática de olhar para si e construir uma identidade, selecionando e incorporando as representações que outros elaboravam” (Delgado, 2003, p. 153).
Conforme revelam as análises de Andrea Delgado (2003) e Clovis Britto (2014a), o acervo pessoal de Cora Coralina constitui-se em significativo exemplo para o reconhecimento das estratégias em torno da fabricação e da consagração de legados nas tramas da economia de símbolos. O acervo sob a guarda do Museu-Casa de Cora Coralina privilegia a dimensão pública da agente, especialmente em dois segmentos: como escritora e como doceira. É significativa a ausência de documentos sobre seus antepassados ou sobre os períodos de sua infância, adolescência e dos 45 anos em que morou no estado de São Paulo. Também é diminuta a correspondência com familiares e a documentação sobre seus filhos e marido. O acervo acompanha, desse modo, a seleção empreendida em seus livros biográficos, em que tais períodos e personagens são diluídos/omitidos. A única exceção é a infância, período que em sua obra ganha centralidade (juntamente com seus últimos 30 anos de vida dedicados à atividade literária), e que não é compreendido pelo acervo.
Todavia, é importante ressaltar que o acervo abrigado no museu não consiste em toda a documentação selecionada/produzida por Cora Coralina ao longo de sua vida, existindo documentos dispersos e sob a guarda de instituições e coleções particulares (Britto; Seda, 2009). Outra questão que merece ser destacada é que o acervo não remete apenas à atuação acumuladora da titular. Resultou em um empreendimento coletivo e, por isso, implica considerarmos triagens e seleções feitas também por amigos, familiares e pela própria instituição museológica.
É significativo atentarmos para essa ação coletiva que funciona para além daquele que produziu a obra e que continua a deter autoridade por estar associada à ideia de raridade pela imposição de uma griffe, ato simbólico de marcação. De acordo com Pierre Bourdieu (2002), a questão a ser colocada é como continuar produzindo determinada “marca” (objeto simbólico envolvo pela noção de raridade pela assinatura), sem a presença física do “criador da marca” (indivíduo biológico habilitado a inserir sua assinatura). Na verdade, é a raridade da posição que o agente ocupa no campo que faz a raridade de seus produtos e esse poder, essa fé na magia da assinatura, não pertence somente ao produtor das obras, mas é fruto das lutas incessantes do campo de produção simbólico. Produzir bens associados à determinada griffe é fabricar um produto e produzir as condições de eficácia da griffe transformando seu valor econômico e simbólico. Nesse aspecto, a griffe se torna a manifestação da transferência do valor simbólico que altera a qualidade social dos produtos e pode ser visualizada, no caso do campo literário, na assinatura do escritor, nos prefácios escritos por autores célebres, nas marcas de uma editora, etc.
Essas operações serão aqui visualizadas na trajetória de Cora Coralina, especialmente como sua trajetória de vida e seu projeto criador potencializaram investimentos econômicos e simbólicos em prol de sua distinção no campo literário brasileiro a partir das manipulações em torno de seu acervo pessoal. Na casa ancorada às margens do Rio Vermelho, na cidade de Goiás (GO), reuniu centenas de documentos que ficaram amontoados em gavetas e caixas enquanto rascunhava novas obras e aguardava a publicação das mesmas. No final de sua vida, período de uma explosão discursiva em torno de seu nome e imagem, apesar de receber alguns prêmios de projeção nacional como o de Doutora Honoris Causa (1983) pela Universidade Federal de Goiás, o Juca Pato (1984) da Folha de S. Paulo e União Brasileira dos Escritores e o Grande Prêmio da Crítica (1984) da Associação Paulista de Críticos de Arte e das crônicas de Carlos Drummond de Andrade que chancelaram nacionalmente sua obra, Cora ainda encontrou dificuldades para publicar seus livros.
Conforme descreveu no poema “Meu vintém perdido”, de Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), permaneceu 13 anos no esquecimento “esperando se fazer a geração adolescente/ que só o conheceu na sua segunda edição” (Coralina, 2007, p. 52). E em entrevistas, diários e correspondências não é incomum encontrá-la falando sobre essa temática desde 1960, quando desenvolveu uma peregrinação pelas editoras paulistas em busca da publicação de seu primeiro livro (Britto; Seda, 2009). Frase que inaugura o texto de abertura escrito para a segunda edição de Poemas dos becos: “mais fácil, para mim, escrever um livro do que publicá-lo. Devo a tantos chegar a esta edição. Amigos, muitos, me estenderam as mãos, cuidaram da nova apresentação, escoimaram erros numa revisão minuciosa, me socorreram nas dificuldades” (Coralina, 2001, p. 21). Em carta datada de 1965 ao escritor Augusto Lins a poetisa expôs a dificuldade: “muito me ajudaria perante as editoras, para a publicação de um livro de contos, se tudo quanto sentiu lendo esses Poemas e externou com magia na sua carta, fosse publicado em revista ou jornal dessa culta cidade e assinado com a grandeza de seu nome”. Destacando, ainda, que o destinatário possuía um nome “altamente credenciado” e que, por isso mesmo, a crítica depois de publicada deveria ser enviada para a Editora José Olympio: “a edição dos Poemas já está esgotada. Sinto necessidade de apoio para novos lançamentos. Acontece o seguinte: embora me ajude o conteúdo dos livros, desajuda-me, contudo, a idade e… estamos no Brasil.”
Isso é evidente se observamos que embora seu nome fosse conhecido nacionalmente e tivesse muitos livros prontos, quando faleceu havia publicado apenas três livros de poemas com as seguintes reedições: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, publicado em 1965 pela Editora José Olympio e suas segunda e terceira edições, pela Editora da Universidade Federal de Goiás, respectivamente em 1978 e 1980; Meu livro de cordel, publicado pela Livraria e Editora Cultura Goiana em 1976; e Vintém de cobre, pela Editora da Universidade Federal de Goiás em 1983, com segunda edição pela mesma editora um ano depois. A análise das reedições dos livros de Cora Coralina revela que foram lançadas justamente no período de sua maior projeção nacional, ou seja, a partir de 1980. Todavia, ao contar com o auxílio de amigos para editar suas obras e, nesse sentido, concordar que seus livros fossem publicados por editoras goianas, contribuiu para que seu nome e imagem fossem conhecidos mais do que seus livros. No acervo da escritora é possível identificar matérias em jornais de Goiânia cujos redatores reclamavam da ausência dos livros de Cora nas livrarias goianas e de outros estados. Essa repercussão contribuiu para que a Editora da Universidade Federal de Goiás lhe escrevesse prometendo-lhe uma solução para o impasse:
Prezada amiga Cora. Só agora respondo a sua carta, depois de ter acertado algumas providências a respeito de seu livro. Embora a sua poesia dispense qualquer promoção, é evidente que a crônica de Carlos Drummond de Andrade veio tornar mais fácil o nosso trabalho de difusão e venda do seu livro fora de Goiás. Infelizmente esta Editora estava presa por um contrato de exclusividade com a Livraria Planalto e somente ela, como distribuidora exclusiva, poderia e deveria remeter os livros publicados pela Universidade para as principais livrarias do País, tarefa da qual não estava se desincumbindo a contento. Entramos em entendimento com a Livraria Planalto e, graças à compreensão e boa vontade do Sr. Sebastião de Miranda, podemos agora utilizar os serviços de outras firmas fora do Estado de Goiás. Já nos dirigimos a três das melhores distribuidoras de livros do País visando, especialmente, à colocação do seu livro nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Junto segue cópia da carta endereçada a essas Distribuidoras para seu conhecimento. Os 1.000 exemplares de sua propriedade estão guardados na Imprensa da UFG onde poderão ser apanhados quando assim o desejar. Cordial abraço deste seu amigo e admirador, Joffre Rezende. Of. n.º 16/81. Goiânia, 27 de fevereiro de 1981.
Escolhemos esse documento por acreditarmos ser ilustrativo das relações que o nome ou marca “Cora Coralina” empreendia no campo literário brasileiro após a crônica e as cartas de Carlos Drummond de Andrade que reconheceram a importância do legado da poetisa goiana. Questão explícita no ofício quando afirma que o poder simbólico da marca “Drummond” facilitaria sobremaneira a difusão da obra da poetisa fora de Goiás. Reconhecimento que acarretou maiores olhares sobre a escritora que, por conseguinte, despertaram o interesse da crítica e do público leitor e exigiram uma distribuição eficiente de seus livros para fora do estado.
Essa operação simbólica se espraia com força quando nos atentamos para os acervos pessoais e é ela que confere e justifica o interesse crescente pelos conjuntos documentais acumulados por um agente. Os acervos se revestem da griffe de seus produtores, do titular e de outros autores que se correspondiam ou mantinham relações no campo de produção cultural. Nesse caso, não apenas (e também) porque pertenceram ao detentor do capital acumulado e, por isso mesmo, se transformaram em objetos revestidos por esse capital, mas por carregarem literalmente o autógrafo desses agentes e os bastidores de sua “criação”. Poderíamos aproximar o valor dos acervos, ao valor obtido pelas obras inacabadas de um pintor, reconhecidas justamente por sua raridade e incompletude. Seria uma operação do tipo sinédoque, materializada pelo estilo inconfundível e explicitada pela assinatura ou nome próprio. Como o personagem mitológico Midas, o acervo pessoal se reveste de uma “magia”, por ter sido tocado pelo autor e, muitas vezes, fundamentado e subsidiado suas obras. Por isso não consiste somente em manifestação material do legado, mas em um capital de testemunho capaz de gerar a engrenagem do campo de produção simbólico e, através da griffe que sustenta, garantir a “imortalidade” de seus “criadores”. Ilustrativos nesse aspecto são as obras póstumas publicadas a partir da documentação deixada no acervo, as exposições biográficas, os museus literários, os trabalhos acadêmicos baseados na documentação, dentre outros exemplos. Ganha vulto, assim, o que intitulamos de uma socioantropologia das reputações, entendida como as relações voltadas para a fabricação e manutenção da crença em determinados nomes, ou seja, na produção do renome.
Poderíamos entender a reputação como o conjunto de procedimentos de produção e reprodução da illusio, crença coletiva que produz valor aos bens culturais. A assinatura do artista colocada em uma obra confere um preço desvinculado ao custo de fabricação e deve essa eficácia mágica “a toda a lógica do campo que o reconhece e autoriza; seu ato não seria nada mais que um gesto insensato ou insignificante sem o universo dos celebrantes e dos crentes que estão dispostos a produzi-lo como dotado de sentido e de valor” (Bourdieu, 1996, p. 195). Daí a importância de compreender que existir é diferir, ou seja, observar as estratégias dos integrantes do campo artístico em busca do reconhecimento: “fazer um nome” aos artistas e aos produtos que fabricam ou propõem. Nesses termos, os agentes continuam mobilizando a energia em torno do nome do personagem através da fabricação de determinadas reputações que confeririam lucros simbólicos e econômicos, ou seja, da operação de criar a autoridade da criação.
O que ensaiamos designar uma socioantropologia das reputações dialoga indiscutivelmente com o que Nathalie Heinich (1991) esboçou como uma antropologia da admiração. Estudando o processo de mitificação e manutenção da crença em Vincent Van Gogh, erigiu três modelos comumente construídos em torno da imagem do pintor que objetivaram valorizar o preço de suas telas e angariar a simpatia do público: o “santo”, o “gênio” e o “herói”. As biografias construídas aproximam a trajetória do pintor à de um santo e analisam como sua fortuna crítica contribuiu para uma revisão de sua vida e obra, resultando na aceitação de suas obras no mercado e no interesse crescente por sua vida ao ponto de os lugares onde viveu se tornarem locais de peregrinação. A “santificação” se daria a partir dos diversos sacrifícios encontrados em sua trajetória, da ideia de um chamado, do isolamento autoimposto, da extrema pobreza e da vocação para a profissão. A ideia de “gênio” da pintura é desenvolvida por aqueles que o consideram como um homem à frente de seu tempo, dotado de qualidades excepcionais, e a de “herói” devido à luta e os obstáculos vencidos em prol de sua arte. A autora demonstra como tais modelos dialogam entre si e contribuem para a fabricação da crença no artista envolta pela noção de “singularidade” e, de certo modo, interferem nas tramas que fabricam a crença no mercado de bens simbólicos.
Conforme destacamos, é fundamental a manutenção dos ciclos de consagração e, para tanto, torna-se necessária a existência de agentes capazes de conservarem e/ou maximizarem o capital, se beneficiando do lucro simbólico (e material) decorrente de suas operações. Tendo como estudo de caso as configurações de uma economia de símbolos no acervo de Cora Coralina, nosso intuito é visualizar como os agentes manipulam a crença com vistas à difusão de aspectos da trajetória da escritora, de suas obras e à promoção de seu acervo pessoal no mercado simbólico, reafirmando o prestígio e maximizando seu capital institucional.
Entre economia e cultura: a griffe “Cora Coralina”
Apesar de dizer em entrevistas não se importar com a imortalidade simbólica e que “o que vale é a imortalidade da carne, dos músculos, dos ossos, da massa cinzenta” (Borges, 2004, p. 1), observamos que Cora dedicou parte de sua vida à busca da imortalidade por meio de suas obras. Aqui dialogamos com Alessandra El Far (2000) ao concebermos tais estratégias autorais como mecanismos de “encenação da imortalidade”, garantindo a sobrevivência de determinadas memórias e, por isso mesmo, a invenção de tradições.
No caso de Cora Coralina essa “imortalidade” pode ser estendida ao acervo pessoal que compreende seus objetos pessoais, seu arquivo literário e sua biblioteca. Muitos são os turistas e frequentadores da casa da poetisa que ainda se lembram de determinados objetos e documentos espalhados sobre mesas ou empilhados em caixas de papelão em sua casa. Além de seu conteúdo, a materialidade do acervo pessoal aciona memórias de e sobre Cora Coralina contribuindo para a fabricação de determinados repertórios sobre a personagem e, por isso mesmo, articulando valor econômico e simbólico. A gestão do legado consiste em promover a vida e obra da autora, reatualizando e ritualizando determinadas versões construídas por ela e por outros agentes de acordo com os interesses dos herdeiros, das instituições de guarda e do campo literário vigente.
Nesse aspecto, é fundamental vislumbrar a ação do Museu-Casa de Cora Coralina na produção/consolidação da sua memória biográfica. Após a morte da escritora seus herdeiros venderam a casa em que residiu a maior parte da vida, onde elaborou sua obra e constituiu seu acervo documental, para a Associação Casa de Cora Coralina, pessoa jurídica de direito privado e de natureza cultural fundada em 28 de setembro de 1985. Instituição criada com o intuito de preservar bens móveis e imóveis, assim como dar prosseguimento à concretização dos ideais da poetisa, tendo como finalidades preservar sua memória e divulgar sua obra (Delgado, 2005).
De início, a pergunta a ser feita é qual memória seria “preservada” pela associação. Nessa ordem de ideias, a ata deixa entrever a resposta quando afirma a intenção de “dar prosseguimento à concretização dos ideais” da autora, ou seja, seria a memória selecionada pela titular. Memória essa imbricada em seus “bens móveis e imóveis” e daí a importância de preservar sua casa e seu acervo pessoal. Os filhos da poetisa venderam a casa e os objetos nela presentes para que a associação criasse um museu biográfico, ação concretizada graças aos recursos da Construtora Alcindo Vieira de Belo Horizonte e da então Fundação Nacional Pró-Memória, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que possibilitaram a aquisição dos bens (130 milhões de cruzeiros) e a restauração dos mesmos (59 milhões de cruzeiros).
Aqui é oportuno recordar a criação do Museu-Casa de Cora Coralina. Inaugurada em 20 de agosto de 1989 na data em que se comemorou o centenário de nascimento da escritora, a “Casa de Cora”, como é comumente chamada, coopera com a paisagem e o endereço na realização de duas tarefas que se aproximam das que Eneida Cunha (2003) identificou ao analisar a Casa de Jorge Amado: reinvestir a inscrição da memória e plasmar a narrativa autobiográfica. A casa se torna, desse modo, uma construção autobiográfica com forte assinatura e, como um texto, impõe a sua própria narrativa “aberta à leitura, mas resistente às interpretações que a desvirtuem, que rasurem ou alterem a imagem instituída do escritor” (Cunha, 2003, p. 125). O museu se tornou um dos principais espaços de fabricação/consagração do legado coraliniano na medida em que foi montado no espaço biográfico eleito pela autora, lugar que reúne seus objetos pessoais, reconta uma leitura específica da obra e de sua história de vida e que se tornou no principal guardião de seu acervo documental (embora não seja o único).
Amigos e familiares decidiram consolidar e criar mecanismos para a reinvenção da crença em Cora Coralina e ao longo dos anos instituem uma série de eventos destinados a homenageá-la, revisitar sua vida e obra e a analisar o seu legado. Nesse sentido, diversas instituições estiveram envolvidas nessas comemorações abrigando ou produzindo eventos ou criando e fornecendo os discursos a eles relacionados: museus, bibliotecas, exposições, biografias, revistas, livros, praças, programas especiais veiculados na TV, editoras, eventos como o “Dia do Vizinho” e o “Dia do Cozinheiro” (criado pela poetisa e comemorado anualmente no dia de seu aniversário, 20 de agosto), as comemorações do centenário de seu nascimento (em 20 de agosto de 1889), do cinquentenário de sua volta à cidade de Goiás (em março e abril de 2006) e dos seus 120 anos de nascimento (durante todo o ano de 2009). Conforme analisa Luciana Heymann (2004), as datas comemorativas não são dotadas de valor intrínseco, nem se justificam no passado. Seus significados resultam da atribuição de valor ao evento ou pessoa que se recorda, envolta nos imperativos do presente e nos lugares ocupados pelos agentes que comemoram. A importância desses eventos seria construir mecanismos que legitimariam ações em nome da memória (sobre qual leitura do passado e o monopólio do direito de falar sobre o passado), acionando, assim, a rede de economia simbólica em torno de determinadas pessoas e fatos. Nesse aspecto, possuir acervos consiste em uma estratégia importante para adquirir essa legitimidade. Eles embasam exposições, pesquisas, publicações e, ao mesmo tempo, constituem em forma de “atestar” a importância das comemorações: “os acervos documentais e o capital de testemunho de que são investidos ocupam um lugar central, bem como os acervos museológicos e os atributos de autenticidade que conferem às peças sua força simbólica” (Heymann, 2004, p. 5). Também é importante destacar que não basta possuir acervos, mas desenvolver estratégias para utilizá-los como trunfos ao subsidiar homenagens, o prestígio das instituições e pessoas deles responsáveis, as redes de relações desses agentes, os contatos nas esferas acadêmica, governamental e junto a agências de financiamento.
Os acervos literários participam de uma lógica da reciprocidade entre valor e memória: enquanto a lembrança torna valioso o objeto lembrado, o objeto torna valiosa a lembrança. Os itens que integram os acervos se revestem indistintamente de valor simbólico e de valor comercial, e tanto os lucros simbólicos quanto os econômicos oportunizam cotações recíprocas. No caso dos acervos literários, seus proprietários (familiares, curadores, instituições de guarda, pesquisa e difusão) realizam a mesma operação de denegação da economia destacada por Bourdieu (2002). Prova disso é que raramente se explicitam os valores de compra desses documentos, as disputas em torno de legados e direitos autorais, a quantidade de recursos materiais e humanos destinados à sua preservação, ou os lucros obtidos com a publicação de obras inéditas, biografias e exposições pautadas nos acervos.
No caso de Cora Coralina a importância do acervo como subsídio à legitimação de muitas realizações em seu nome é evidente. Exemplo disso foi a opção dos herdeiros em dividir o acervo oficial da autora, ambos de propriedade da família: um sob a responsabilidade e guarda da Associação Casa de Cora Coralina, localizado no Museu-Casa de Cora Coralina na cidade de Goiás, e outro sob os cuidados de Vicência Bretas Tahan, filha da autora e representante legal dos herdeiros, localizado no apartamento da mesma na capital paulista. Embora saibamos que os acervos pessoais não são completos e que outros agentes possam ter conjuntos documentais relativos a determinado indivíduo, aqui observamos a configuração de dois acervos oficiais da poetisa resultantes do desmembramento dos documentos acumulados em vida pela titular. Surge um acervo que era privado e se tornou público (no caso do acervo do Museu-Casa de Cora Coralina) e um acervo que permaneceu privado (o acervo sob a guarda da filha de Cora). A família, que é detentora dos direitos autorais da poetisa, optou por deixar no museu a biblioteca, os recortes de jornais, a correspondência e os originais das obras já editadas, permanecendo com os textos inéditos e outros documentos selecionados antes da venda do imóvel e abertura do museu em agosto de 1989. Separação que propicia a frequente publicação de obras póstumas (fruto da compilação de inéditos) e eventos (fruto da utilização do material já editado). Desse modo, tanto a associação quanto a família possuem discursos de autoridade sobre o legado memorial de Cora Coralina. Discursos na maioria das vezes interdependentes e, embora não exclusivos, percebemos a família se dedicando à gestão editorial e jurídica e a associação, à gestão museológica e de comemorações em torno do nome da escritora.
A primeira ação da família foi separar os textos inéditos do restante do material. Já a associação concentrou-se na seleção do acervo documental e do acervo museológico (os documentos que comporiam a exposição do museu e os que ocupariam a reserva técnica). O acervo pessoal da autora foi e vem sendo utilizado pelos herdeiros com vistas à promoção e à preservação de determinadas leituras sobre sua obra e vida, garantindo sua “imortalidade” e suscitando um renovado interesse do público no mercado de bens simbólicos. Para tanto, inicialmente analisaremos a gestão editorial promovida pela família em parceria com a Editora Global, a gestão memorial/museológica realizada pela Associação Casa de Cora Coralina e a vigilância comemorativa empreendida tanto pela família quanto pelos membros da associação visando, a partir do acervo, compreender as estratégias de renovação da crença no nome Cora Coralina.
Após a morte de Cora e a decisão de vender o imóvel para a criação do museu, Vicência Bretas Tahan, filha caçula da escritora que representa legalmente a família, levou parte do acervo documental para sua residência na capital paulista. Esse conjunto em sua maioria se constituía de textos inéditos visando um projeto de publicação ao longo do tempo: a primeira ação da família, até para facilitar as negociações, já que residia no estado de São Paulo, foi estabelecer no ano da morte da escritora um contrato de edição exclusivo com a Global Editora, sediada na capital paulista. Na verdade, desde 1983 a Global vem empreendendo ações no sentido de reeditar constantemente a obra coraliniana, publicar textos inéditos da autora, além de inseri-los em coleções de poesia e coleções infanto-juvenis. Ainda em vida, Cora autorizou que a editora fosse responsável pela quarta edição de Poemas dos becos de Goiás (1983). De acordo com o histórico descrito no site da editora, fundada em 1973 a Global teve sua produção voltada para livros considerados referência para o pensamento socialista, publicando autores como Marx, Engels e Lênin. Também privilegiou em seu catálogo a publicação “dos mais conceituados autores da literatura em língua portuguesa, consagrados tanto no cenário nacional como internacional”, consistindo em uma das maiores exportadoras de autores brasileiros publicados em língua espanhola, atendendo toda a América Latina e os Estados Unidos. Em seu material de divulgação os autores mais citados como integrantes de seu catálogo são Ana Maria Machado, Câmara Cascudo, Cora Coralina, Ferreira Gullar, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Ignácio de Loyola Brandão, Marina Colasanti, Marcos Rey, Ruth Rocha e Mario Quintana. A estratégia de difundir a ideia de que seu catálogo reúne os mais conceituados escritores de língua portuguesa serve para que cada um dos autores integrantes reforce o capital simbólico do outro, gerando legitimidade e contribuindo para que a editora também receba uma parcela do capital simbólico de seus “parceiros”. No caso de Cora Coralina, embora ela também tenha trilhado as veredas da prosa curta e da literatura para crianças, sua visibilidade maior se dá pela poesia.
Conforme salienta Flávio Moura (2009), ao optar trabalhar com um gênero que conquista pouco espaço no mercado editorial brasileiro, a publicação se torna um duplo prêmio para o autor: entra no rol dos “consagrados” ao ter sua obra editada por uma concorrida editora e, também, consegue fazê-la abrir concessão a um gênero não rentável. Nesse aspecto, o fato de “atentar à produção de poesia converte-se em capital simbólico para a editora, que com isso reforça sua imagem de pouco comprometimento com o mercado” (Moura, 2009, p. 361).
Desse modo, os agentes e instituições responsáveis pelos acervos tiram proveito do capital simbólico acumulado, advogam a importância dos documentos para a compreensão da gênese dos processos criativos e da memória cultural, sem explicitarem que, além dessas finalidades, se tornam propulsores de um capital econômico. É essa operação discursiva que contribui, de certo modo, para a obtenção de uma espécie de crédito capaz de garantir ganhos “econômicos”. No momento em que os acervos literários, cada vez mais, se aproximam da ideia de obras de arte ou patrimônios (basta observarmos a crescente musealização dos acervos de escritores; as exposições e instalações pautadas em manuscritos, correspondências e fotografias; ou as edições fac-similares de manuscritos e datiloscritos); as instituições e agentes envolvidos em sua trama assumem funções de “comerciantes de arte” ao deslocarem os acervos para além das gavetas e armários, colocando-os no “mercado” por meio de exposições, publicações e encenações e, com essa atuação no mercado de bens simbólicos, se esforçam para a consagração do “produto”.
Para além da compreensão da “ambivalência” dos efeitos da mercantilização dos acervos que ao mesmo tempo reativa a energia social dos autores e obras (na maioria das vezes pela sua incorporação ao mercado turístico ou editorial) e “descredibiliza” os bens pela inserção do valor de troca, no caso de enfoques ostensivamente voltados para o mercado, nos interessa suscitar algumas hipóteses do crescente interesse pelos acervos literários e os prováveis motivos que ampliaram seu trânsito nos diferentes campos de produção de bens simbólicos.
Exemplo dessa configuração é a difusão da obra de Cora Coralina realizada pela Editora Global. De imediato a ação foi publicar a primeira edição de Estórias da casa velha da ponte, livro de contos organizado pela autora e lançado no mesmo ano de sua morte, 1985. A editora apostou não apenas em reeditar os três livros de poemas inserindo novos comentários críticos e uma série de fotografias da autora e de Goiás, mas em lançar facetas pouco conhecidas da escritora, como a Cora cronista e contista e também a autora de livros para crianças. Seguindo essa estratégia publicou Os meninos verdes (1986), A moeda de ouro que um pato engoliu (1987) e O tesouro da casa velha (1989).
Além de publicar os inéditos, a família também decidiu editar o material aos poucos, diluindo a presença de Cora Coralina ao longo do tempo ou, porque não dizer, desenvolvendo mais uma forma de encenar a imortalidade: “Temos centenas de poemas e contos todos ainda guardados na gaveta. Todo o material inédito de minha mãe ficou comigo. Os originais de livros já editados foram para Goiás. Os inéditos aos poucos serão publicados” (cf. Sena, 2002, p. 1). Conjuntamente com o livro O tesouro da casa velha a Global publicou a biografia romanceada Cora coragem, Cora poesia (1989) nas comemorações pelo centenário de Cora Coralina. Escrita por Vicência Tahan a obra está incluída no catálogo da editora no rol das “obras de Cora Coralina” e auxilia na fabricação de uma biografia oficial produzida pela representante da família e difundida pela editora. Como mecanismo de celebração a biografia “orienta” as leituras possíveis sobre a vida e obra coraliniana, visto que a autora além de filha é a representante legal da família nas ações de autorizar ou vetar a utilização da imagem e da obra de sua mãe, frequentemente assediada para adaptações no teatro e no cinema. Baseados no acervo documental e em obras publicadas anteriormente, a editora ainda publicou Villa Boa de Goyaz (2001), O prato azul pombinho (2001), O poema do milho (2006), As cocadas (2007) e A menina, o cofrinho e a vovó (2009). Além disso, editou o livro Os melhores poemas de Cora Coralina (2004), coletânea de poesias seguida de análise literária, biografia e fortuna crítica organizada pela poetisa e crítica literária Darcy França Denófrio para integrar a coleção “Os Melhores Poemas”. A coleção consiste na seleção de poesias do legado de 61 autores considerados expoentes da literatura brasileira e mundial. A escolha das obras e produtores e dos escritores e críticos convidados para a seleção e prefácios deve obter consenso dentre os detentores de distinção no campo literário. Demonstra Bourdieu (1996, p. 68) que assim “como os caminhos da dominação, os caminhos da autonomia são complexos, se não impenetráveis. E as lutas no seio do campo […] podem servir indiretamente aos escritores mais preocupados com sua independência literária.” Dessa forma, a obra de Cora Coralina se legitima na medida em que é inserida na coleção (masculina quase que em totalidade), se respaldando no prestígio dos autores publicados, a exemplo de Castro Alves, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Luís de Camões, Machado de Assis, Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
A Global Editora com a anuência da família a cada ano tem publicado novas edições e reedições, ao ponto de colocar em seu catálogo de literatura brasileira a rubrica “Coleção Cora Coralina”. Se compararmos as edições anteriormente publicadas pelas editoras goianas, observamos uma mudança significativa no projeto gráfico no intuito de não apenas destacar cenários de Goiás, mas focalizar a imagem da autora. No ano 2000 as capas foram padronizadas, cada obra com uma cor específica, mas com uma linguagem uniforme. Além disso, as reedições trazem fotografias de diferentes fases de vida da autora reforçando a ideia da obra como autobiografia. Uma das orelhas do livro apresenta biografia resumida e na outra é transcrita a primeira carta de Carlos Drummond de Andrade enviada à autora em 14 de julho de 1979 e que constituiu um divisor de águas em sua recepção. A partir de 2005 os livros tiveram seu formato modificado para 16 x 23 cm, reforma visual que implicou o aumento das letras facilitando a leitura e gerando uma identidade entre os diferentes livros. Além disso, em diversas entrevistas para a imprensa os herdeiros anunciam que estão organizando novas coletâneas de crônicas, poemas e correspondências inéditas.
Também é importante observar que a cada dois anos em média tem se publicado reedições das obras, o que comprova a efetiva circulação do produto. Poemas dos becos, por exemplo, já alcançou a sua 22ª edição. Também é importante observar que não somente nas livrarias é possível adquirir os exemplares. Seguindo a tradição iniciada pela própria autora, o Museu-Casa de Cora Coralina constitui em um dos principais pontos de comercialização dos livros. O acervo museológico estimula o interesse pelas obras originadas do acervo documental e vice-versa. Ambos contribuem para a fabricação e propagação da crença no projeto criador de Cora Coralina.
Em um primeiro momento, compete relembrarmos que a própria constituição e manutenção de acervos é um exercício de poder. Entre escolhas e descartes, o titular determina quais documentos devem permanecer e quais memórias a respeito de sua trajetória e projeto criador serão perpetuadas. A preservação dos acervos pelos herdeiros (legais e/ou simbólicos) está relacionada a uma série de interesses dos agentes que integram o campo de produção simbólica que o titular integrou ou ousou pertencer ou outro campo conveniente para captar a energia social em torno de seu nome, ampliando, dessa forma, os lucros simbólicos e materiais. Daí o próprio fato de ter um acervo preservado e mantido por uma instituição renomada consiste em passo significativo (mas não único) para o reconhecimento póstumo. A eleição de determinados acervos ocorre em detrimento de outros e a valorização do conjunto documental se justificaria pela preservação de determinada memória cultural, relacionada à trajetória do titular, seu projeto criador e grupos de pertencimento e interesse. É por isso que a operação de arquivamento e a crescente monumentalização dos acervos pessoais constituem também um ato político na medida em que instituem valores. Não sem motivos surge a tendência de constituir e celebrar acervos de escritores e grupos historicamente embargados, valorizando outras memórias (geracionais, étnicas, regionais, populares, raciais, de gênero) e inserindo novos sujeitos e segmentos na seara arquivística.
O interesse crescente pelos acervos literários e o desenvolvimento de uma economia simbólica dos acervos diz respeito ainda à diversidade de materiais (manuscritos, livros, fotografias, jornais, materiais midiáticos e objetos tridimensionais); saberes especializados que articulam (biblioteconomia, museologia, história, economia, sociologia, artes visuais, publicidade, arquivística, estudos literários, linguísticos e culturais); e profissionais envolvidos em sua constituição, organização, preservação e difusão (administradores, arquivistas, bibliotecários, restauradores, historiadores, museólogos, cenógrafos, revisores, editores, advogados, contadores, assessores de imprensa, arquitetos, profissionais de informática, dentre outros). Os acervos dialogam, assim, com os sistemas técnicos e empresariais de disseminação de informações e comércio simbólico e se apropriam constantemente de diferentes mídias e de outras artes.
No campo dos museus tais diálogos têm adquirido ressonância a cada dia, especialmente quando observamos um alargamento das funções museológicas a partir dos impactos sociais presentes sob o ponto de vista material e simbólico. Desse modo, tais configurações fortalecem uma economia dos museus no intuito de “dinamizar a economia local; servir de âncora a projetos de revitalização de espaços degradados das cidades, comunidades, bairros, etc.”, além de “valorizar obras e artistas; movimentar o mercado de artes; potencializar autoestima de populações; dar acesso aos bens culturais coletivos; afirmar identidades; realizar inclusão social; exercitar a cidadania” (Assis, 2011, p. 7). Ao destacarmos esse fator, tendo como exemplo a fabricação de Cora Coralina no mercado de bens simbólicos, também reconhecemos os jogos de poder resultantes da aproximação entre economia, museus e patrimônios. Espaço atravessado por confrontos entre os usos plurais da categoria “patrimônio”, a partir das tensões entre os artefatos privados e públicos, sagrados e profanos, pessoais e coletivos, que evidenciam o sistema de exclusão inerente a lógica da conservação patrimonial (Tamaso, 2007).
Essas problematizações colocam em evidência alguns dos bastidores que propiciaram a fabricação da imortalidade de Cora Coralina (Abreu, 1996). Nesse sentido, enquanto os herdeiros legais desenvolviam o trabalho de gestão da obra e da imagem, os membros da Associação Casa de Cora Coralina, compostos em sua maioria por amigos e vizinhos da poetisa, definiriam uma organização do acervo documental e do acervo museólogo. A prioridade foi organizar o acervo tridimensional para a primeira exposição do museu inaugurada em 20 de agosto de 1989, dia do centenário de nascimento da poetisa. Conforme destaca Andrea Delgado (2005), o Museu-Casa de Cora Coralina configura um projeto de organização e acumulação de diversos tempos da vida da poetisa, um arquivo de objetos, imagens e discursos presentificados que evocam Cora e promovem sua imortalização. Avaliando o primeiro projeto museológico elaborado por Célia Corsino e Virgínia Papaiz, informa que atendeu as expectativas da associação e, por isso mesmo, a narrativa material da Casa de Cora foi “fruto de uma seleção material e simbólica, cujo interesse não é reproduzir ‘tudo como no tempo de Cora’, mas enquadrar o passado dentro dos limites da biografia que se quer fabricar e oficializar” (Delgado, 2005, p. 106). Em outras palavras, a narrativa museológica solidificaria a narrativa autobiográfica produzida pela poetisa e desenvolveria uma lógica análoga à que analisamos nos acervos documentais (até porque aqui os objetos também são tidos como documentos, suportes de significados). Ao montar a exposição, alguns discursos, imagens e objetos são eleitos em detrimento de outros, empenhando-se nas tarefas de produzir lembranças e esquecimentos e de dar a visibilidade simbólica por meio de eventos com o intuito de manter e reinventar o culto a Cora Coralina.
Na verdade, as três exposições permanentes que o museu abrigou foram inauguradas em momentos comemorativos. A primeira, como dissemos, foi o ponto alto das comemorações do centenário da poetisa e permaneceu montada de 20 de agosto de 1889 até 31 de dezembro de 2001, data em que uma enchente do Rio Vermelho invadiu o museu. Na elaboração dessa exposição, as museólogas recorreram ao acervo documental da poetisa apenas para a obtenção de fotografias de diversas fases da autora espalhando-as premeditadamente pela residência e, além de exporem a biblioteca pessoal, colocaram três cadernos de manuscritos e algumas correspondências em vitrines. Após a enchente os acervos museológico e documental foram restaurados e reorganizados. Devido à importância simbólica e econômica que a Casa de Cora conquistou na dinâmica turística da cidade de Goiás, o museu se manteve aberto durante oito meses com uma exposição “improvisada” e os visitantes puderam acompanhar os procedimentos de restauração do imóvel, dos objetos e dos documentos, motivados pelo que poderíamos designar de “consumo do trágico” (Britto, 2014b). Com a doação de 150 mil reais, a Telegoiás Brasil Telecom propiciou a restauração do imóvel e do jardim, a renovação da exposição e a separação e o acondicionamento emergencial do acervo.
A exposição inaugurada em 2002, sob a curadoria de Célia Corsino, promoveu um diálogo mais explícito com o acervo documental. Conforme destacou a matéria, os painéis espalhados pela casa traziam reproduções ampliadas dos documentos até então inéditos ao grande público. A exposição foi complementada em 2003 quando o museu destinou uma sala para a exibição do resultado da restauração de alguns manuscritos atingidos pela enchente. A restauração e organização documental foram feitas de acordo com as normas internacionais de arquivologia, e subsidiada pela Fundação Vitae. Selecionada dentre mais de mil projetos, a Casa de Cora recebeu 70 mil reais utilizados “na compra dos materiais necessários à restauração, acondicionamento e digitalização dos documentos e treinamento e remuneração de estagiários” (Borges, 2003, p. 1).
Apesar das inovações, o conteúdo dos painéis reforçava a autobiografia escrita pela poetisa. Os documentos dialogavam com trechos de poesias selecionadas para compor ambientes específicos da residência como cozinha, quarto, sala de escrita, sala de condecorações, sala de visitas e biblioteca reiterando determinados marcos biográficos e a ideia de que tudo permanecia como “no tempo de Cora”. Questões que ganharam visibilidade no projeto de atualização do acervo permanente inaugurado nas comemorações dos 120 anos de nascimento da escritora, em 20 de agosto de 2009. Novamente sob a curadoria de Célia Corsino, a exposição foi patrocinada pelo Programa Caixa de Adoção de Entidades Culturais e priorizou a reprodução dos documentos do acervo, inclusive montando uma linha do tempo com os mesmos, e a exibição de fotografias, correspondências e manuscritos de poemas e crônicas, dispostos em 12 vitrines ao longo do museu. Para além da ancianidade, a exposição sublinhou aquilo que Andrea Delgado (2005) havia identificado como um processo que visava inscrever Cora como arquivo e arauto da memória da cidade, amalgamando a memória da escritora com a Casa Velha da Ponte e, desse modo, transformando a poetisa em um “monumento” de Goiás.
Nesse aspecto, torna-se recorrente a temática da memória quando tratamos da montagem e do manejo dos acervos documentais. De acordo com Andreas Huyssen (2000), a partir das últimas décadas do século passado emergiu uma cultura da memória marcada, dentre outros aspectos, pela comercialização crescentemente bem-sucedida da memória pela industrial cultural do Ocidente. Em suas análises, não se pode discutir memória pessoal, geracional ou pública sem que consideremos a enorme influência das novas tecnologias de mídia, a partir da mercadorização e da espetacularização em filmes, museus, docudramas, sites, livros de fotografia, ficção, etc.: “não há nenhum espaço puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço. Depende muito, portanto, das estratégias específicas de representação e mercadorização e do contexto no qual elas são representadas” (Huyssen, 2000, p. 21). Não é sem razão que o autor recorre a uma discussão sobre a obsessão por monumentos, o monumento como algo memorial ou evento comemorativo público, o que, segundo informa, vem adquirindo força nos últimos anos e que, conforme nossas análises, dialoga sobremaneira com a atual gestão dos acervos documentais. Isso porque entende que houve uma mudança em nossa percepção de monumentalidade e, atualmente, devemos considerar a monumentalidade em miniatura, do cada vez menor e mais poderoso chip de computador. Questão que nos faz refletir sobre cada item documental que integra o acervo pessoal, capaz de conter tensões e representações, lembranças e esquecimentos. Desse modo, conclui que a memória coletiva não é menos contingente e instável: “de modo nenhum é permanente a sua forma. Está sempre sujeita à reconstrução, sutil ou nem tanto. A memória de uma sociedade é negociada no corpo social das crenças e valores, rituais e instituições” (Huyssen, 2000, p. 68).
Também vale ressaltar a importância que os acervos vêm adquirindo para a movimentação do mercado turístico. No caso do Museu-Casa de Cora Coralina essa importância extrapola o preço individual cobrado para visitação, que sustenta as atividades do museu, juntamente com a venda de livros e souvenires e a captação de recursos por meio de editais e leis de incentivo a cultura. O museu e o acervo que comporta consistem na mola propulsora da atividade turística de toda uma região que tem no nome Cora Coralina um cartão de visitas. De acordo com os livros de visitas do museu é possível observar uma média de 20 mil turistas por ano, constituindo-se em um dos museus mais visitados do estado de Goiás.
O trabalho de difusão da biografia oficial e das leituras críticas salvaguardadas pelo museu também perpassa a organização de coletâneas acadêmicas, a exemplo do livro Moinho do tempo: estudos sobre Cora Coralina (2009) que reuniu trabalhos de pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras. Além disso, promove eventos comemorativos como o “Festival Cora Viva Coralina” em homenagem aos 120 anos de nascimento da poetisa, que contou com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o patrocínio do Ministério do Turismo. Com a realização desses eventos a instituição reforça a crença no projeto criador coraliniano e, ao mesmo tempo, projetando seu acervo e suas competências, reafirma seu capital institucional, a exemplo da exposição intitulada “Cora Coralina, Coração do Brasil” realizada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, durante o segundo semestre de 2009.
Outra constatação importante diz respeito ao crescente interesse pela figura do escritor e por sua indissociável “marca literária”. Conforme destaca Tânia Pellegrini (1999), atualmente vivenciamos um momento em que se privilegia a imagem do escritor; imagem que, muitas vezes, chega a substituir a importância da própria obra. Cada vez mais é importante o autor ter seu rosto divulgado, sua intimidade desvendada. A crescente exposição do escritor, em lançamentos e entrevistas literárias, “tem tido como móvel o desejo legítimo de poder transmitir sua mensagem pessoal e de dar-se a conhecer, a fim de melhor conquistar o público para seus livros”, e para as editoras se torna uma oportunidade de “nortear o gosto do leitor na direção dos produtos que pretende colocar no mercado, suas ‘marcas’ registradas” (Pellegrini, 1999, p. 173).
Embora não tenha sido nosso objetivo aprofundar nesse aspecto, visualizamos que ele contribui para o interesse crescente nos acervos literários, dialogando com a ingênua perspectiva de que o acervo revelaria uma pretensa intimidade ou uma faceta mais “verdadeira” dos agentes envolvidos. Atravessados pela marca da personalidade de seu titular, os acervos provocam aquilo que Ângela Gomes (1998) denominou como um “feitiço”: encantamento acionado pelo conjunto de fontes, outrora inacessíveis ao grande público, gerador de ilusões de espontaneidade, verdade e autenticidade. Feitiço alimentado pela sistemática da economia dos bens simbólicos com vistas a envolver cada vez mais adeptos ávidos por consumir esse tipo de informação avalizada pela assinatura (lato sensu) do artista e fabricada socialmente.
Entre silêncios, sons e fissuras, acreditamos que o exemplo da griffe “Cora Coralina” constitui-se em significativo passo dado ao lançar luz sobre a relação entre acervos literários e economia dos bens simbólicos, com especial atenção para aquilo que designamos de uma socioantropologia das reputações ou estratégias de fabricação/consagração de legados. Inventariando as estratégias em torno do capital herdado por “guardiães” da memória de Cora e o modo como manipulam a energia social em torno de seus nomes, demonstramos como os acervos contribuem para a perpetuação e/ou reorientação dos projetos iniciados em vida por suas titulares. Seja na criação de instituições de memória, no lançamento contínuo de obras ou na realização de ações comemorativas articulando literatura e outras artes, os “herdeiros” assumem um papel significativo na batalha das memórias empreendida no campo literário e, no caso analisado, os acervos pessoais adquirem centralidade nesses projetos. É verdade que independentemente da existência dos acervos outras estratégias seriam acionadas e que tais procedimentos não se reduzem às trajetórias e obras de autoria feminina. O que constatamos foi a plasticidade de tais conjuntos documentais, contribuindo com os agentes imersos nas redes de economia da cultura ao apresentar soluções criativas em meio às mudanças empreendidas pelos processos de industrialização e digitalização do simbólico e, sobretudo, como alternativas profícuas para a garantia de legitimação e de uma maior divulgação da crença nos punhos líricos femininos que ousaram grafar, nas margens, páginas que aos poucos têm impactado o centro de nossa vida literária.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2016
Histórico
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Recebido
24 Abr 2015 -
Aceito
05 Out 2015